Negra palhaça: representatividade e descolonização

 


por Drica Santos - Palhaça Curalina

Desde a faculdade tinha o interesse sobre a linguagem de palhaçaria. Mais tarde tive oportunidade de trabalhar iniciação a palhaçaria com a Cia. Traço[1] de Florianópolis. Um contato mais aprofundado surgiu em julho de 2012 na oficina Bota a palhaça pra fora ministrada por Karla Concá e Vera Ribeiro do grupo As Maria da Graça[2] no encontro de teatro feito por mulheres Vértice Brasil 2012 - T(i)erra Firme. Naquela época a Contação de histórias já influenciava meu trabalho como atriz. Vislumbrava na linguagem do clown a possibilidade de aprofundar meu jogo com o público; exercitar a capacidade de buscar no ato cênico a resposta rápida a imprevisibilidade. Após esse contato com o trabalho d’ As Marias da Graça, como um grupo de mulheres palhaças, estas se tornaram referência significativa em meu caminho como atriz em busca de minha palhaça.

Assim escrevi o projeto Bota a palhaça pra fora de vez que foi contemplado pelo Edital Bolsa Interações Estéticas – Residências artísticas em pontos de cultura 2012 - da FUNARTE. O projeto propunha a criação de um espetáculo de contação de histórias na linguagem do clown através de intercâmbio na Associação de Mulheres Palhaças As Marias da Graça. A proposta foi pesquisar procedimentos cênicos de palhaçaria que, aliados a minha experiência como atriz/contadora de histórias, pudessem alavancar minha inserção nas práticas de palhaçaria feminina, além de criar um espetáculo de contação de histórias cujos recursos fossem mínimos, do ponto de vista material, e que se apoiassem na figura da atriz e seu jogo cênico, ou seja, a partir da descoberta e encontro com minha palhaça.

Quando comecei o processo de pesquisa para o “nascimento” da palhaça percebia que da prática emergia de modo intenso, uma ligação com minha ancestralidade, meus afetos e sensações mais profundas. Na época eu estava em fase de transição do cabelo (libertação da parte alisada e assumia meu cabelo afro).  E como é muito dito no mundo da palhaçaria: a menor máscara do mundo não me escondia, mas sim me revelava. E assim minhas próprias gags foram surgindo e uma relação forte com o cabelo se apresentava. A presença de minhas tias avós, minha avó e minha mãe eram visíveis nas minhas soluções e improvisações em cena. O que surgia de modo objetivo na palhaça era operacionalizado pela subjetividade de meu negro corpo. Depois de ter criado que percebia o que me ocorria.

O próprio nome: Curalina surgiu de um sonho que tive durante o processo criativo. Sonhei com minha tia-avó Durvalina (irmã da minha avó) que faleceu em 2004, eu tinha uma ligação forte com ela desde criança e senti que o nome da palhaça devia ser este ou senão deveria relacionar-se com este. Quando voltei à sala de ensaio, pediram para que compartilhasse um fato cômico de infância; e assim surgiu uma relação com um apelido familiar de infância relacionado a esse fato cômico de minha vida. Foi então que ao retornar ao ensaio me aproximei de minha mestra e diretora Karla Concá e anunciei com empolgação meu nome: Curalina. Houve um reconhecimento da diretora e todas as presentes que realmente era esse meu nome de palhaça; foi unânime a sensação de justeza, pois já havia tentado outros nomes que pareciam não encaixar. 

A escolha de minhas vestes também carregava um atributo ancestral; tinham a ver com os vestidos de minhas tias avós, como também o interesse por “coisas e pessoas antiguinhas” (era como a palhaça costumava dizer), inclusive o modo de falar e as palavras que eu acionava durante as improvisações, eram palavras que elas costumavam dizer. E a relação com o pente foi outro forte atributo da figura cômica que emergia. Minha avó e suas irmãs costumavam andar com pentes na cabeça, ou com o chamado ferro-quente e vaselina, muito usado para alisar o cabelo antigamente; era uma memória significativa que atravessou meu processo criativo. Os pentes passaram a ser um material imprescindível que a palhaça carregava. Toda a ação do espetáculo foi girando em torno da relação com os pentes e meu cabelo. E a questão que me acompanhava era como eu transpunha aquilo a me dar força na cena, como eu reconfigurava o que era opressor (pente de ferro quente, ou “o pente que me penteia”) para uma potencialização de minha figura cômica.

Penso que a Curalina é a “sombra” que me acompanha; sinto o quanto ela potencializa minha voz, no sentido mais amplo da palavra; a voz de uma atriz que acredita no teatro e no que ele pode fazer por nós, a voz da Drica mulher que se permite revisitar seu corpo, a voz da Drica negra que rediscute o termo "afro" inscrito no que ela é; enfim a gama de vozes que nos constituem como "ser vivente". Como eu havia dito, no universo da palhaçaria houve-se muito que trabalhar os procedimentos de Clown é desnudar-se, que o nariz é uma máscara que revela e não esconde. E de fato, trabalhar a palhaça pra mim foi e é isso. A Curalina é esse ser nu de mim mesmo.

Há uma questão que surgiu em novembro de 2016 com relação à questão do ridículo e as gags do meu cabelo, numa mesa intitulada Debates sobre estéticas afro-brasileiras: experiências sobre a criação de narrativas na cena teatral brasileira, um evento de iniciativa da professora Julianna Rosa de Souza[3] do Departamento de Artes Cênicas da UDESC, Fpolis/SC junto ao Coletivo Nega[4]. Tratou-se de uma mesa de reflexão sobre teatro, negritude e resistência.

A pergunta foi de que se essa minha relação com o cabelo não poderia favorecer a ridicularização do cabelo afro, obtendo o sentido inverso de identificação, superação de estereótipos e valorização da estética negra.

De modo geral, na época em que foi concebida a palhaça e o espetáculo eu questionava sobre como seria minha relação com o cabelo em diversos contextos; ficava apreensiva, mas ao mesmo tempo aquilo era/é parte de mim, a perspectiva de trabalho com a palhaçaria é de que é impossível enganar-se; pois é preciso descer fundo no seu próprio ridículo para que a beleza da(o) palhaça(o) se faça. E assim fui reconhecendo cada vez mais minha triste relação de ódio com o cabelo. As movimentações que surgiam nos ensaios com o pente muitas vezes foram de pentear com raiva e a memória da dor por pentear o cabelo. Mais tarde, com as apresentações via que eu tinha que trabalhar isso comigo mesma. Compreender e transformar a relação de ódio e de onde vinha (das relações estruturadas pelo racismo). Sabia que tinha a ver com a aceitação de meu próprio cabelo e isso era muito forte para o trabalho com a palhaça, pois essa “não aceitação” vêm das lógicas racistas coloniais que me atravessam; ou seja, era preciso realmente libertar-se  do grilhões dos valores que ditam que meu cabelo é “cabelo ruim”. Neste sentido percebo a força que os “acordos” sociais realizam em nossas subjetividades e que há um trabalho árduo de reconhecer-se e reconstruir-se em meio ao projeto mímico colonial que estamos imersos e assim emancipar-se de fato, no cotidiano do teatro e da vida; vejo que a palhaçaria vem sendo minha forte aliada nessa busca. 

Atualmente vejo que o que estabeleço com o cabelo está qualitativamente diferente. Antes eu começava o espetáculo como se o cabelo me atrapalhasse para contar a história porque caia na frente do olho e também porque era duro para pentear e hoje a gag de início é de que meu Black Power me dá força de concentração para contar a história e os pentes são meus aliados e meus presentes das ancestrais (da minha avó, da minha tia, etc). É claro que isso faz parte de uma onda de luta pela estética do cabelo afro que vem sendo cunhada ultimamente. Muitos debatem isso com receio de que seja mera moda. De qualquer forma considero muito pertinente essa valorização da estética negra a partir do cabelo como forte elemento de fortalecimento de nossas subjetividades enquanto negras/os e de reconstrução identitária. Sigo tentando refletir sobre em que medida a figura da Curalina reforça ou valoriza estereótipos? Qual a diferença entre o ridículo e a ridicularização no universo cômico e de palhaçaria? Percebo que desta minha experiência com a contação de histórias a concepção de minha palhaça vislumbro um rico caminho de autolibertação dos danos que as lógicas racistas, que me habitavam e que ainda me habitam, fazem com minhas negras identidades. A relação da palhaça Curalina e seu cabelo se tornaram símbolo desta emancipação, fazendo parte de um dos caminhos de luta que vem sendo cunhados ultimamente por estudiosos(as) como a Profa. Nilma Lino Gomes (2008)[5] onde o cabelo é visto não apenas como fazendo parte do corpo individual e biológico, mas, sobretudo, como corpo social e linguagem; como veículo de expressão e símbolo de resistência cultural.

Nilma Lino Gomes (2008) afirma isso com base em seu estudo no qual analisou a ação e as atividades desenvolvidas nos salões étnicos de Belo Horizonte a partir da manipulação do cabelo crespo, baseando-se nos penteados de origem étnica africana, recriados e reinterpretados, como formas de expressão estética e identitária negra. A autora (Gomes, 2008) afirma que a conscientização sobre as possibilidades positivas do seu cabelo oferece uma notável contribuição no processo de reabilitação do corpo negro e na reversão das representações negativas presentes no imaginário herdado de uma cultura racista. Neste sentido que, o trabalho com a Curalina veio e vêm desenvolvendo um caminho poético que marca a passagem do sentido negativo de ridicularização ao sentido positivo do ridículo, ou seja, do cabelo afro visto como “ruim” e de modo pejorativo onde a visão do belo é o padrão de beleza branco, para uma visão do fora do padrão como a verdadeira beleza de si, onde as estruturas sociais são questionadas, ou seja, onde uma práxis revolucionária de negritudes pode se concretizar poeticamente.

E assim venho galgando um espaço de construção de minha autonomia enquanto negratriz[6] ; e atualmente venho fortalecendo esse espaço de reflexão dentro no universo da palhaçaria feminina. Buscando descolonizar pensamentos e atitudes em corpos e contextos, e trazendo a importância da representatividade negra, também, na palhaçaria.



[1] A Traço Cia. de Teatro foi fundada no ano de 2001, na cidade de Florianópolis/SC. Em sua trajetória artística, a técnica do palhaço configura-se como principal recurso pedagógico de formação, treinamento e criação. Junto a esta técnica, investigações sobre o teatro de rua e o teatro cômico popular colaboram à pesquisa cênica da companhia.

[2] Com 26 anos de trabalho, e com sede no Rio de Janeiro, a Associação de Mulheres Palhaças As Marias da Graça se configura num ponto de cultura de forte referência no contexto cultural e teatral do país. São mulheres que trabalham o riso e escolheram a arte da palhaça para expressar o cotidiano feminino. Interferem assim, na visão tradicional deste universo artístico.

[3] Professora Substituta no Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina. É Mestre em Teatro, com dissertação defendida sobre a Dramaturgia da Dança dos Orixás - prática artística de Augusto Omolú. E Doutoranda em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro PPGT-UDESC. Suas pesquisas concentram-se na área de: Teorias e Práticas do Teatro, atuando nos seguintes temas: dramaturgia, teatro negro, identidade e diáspora africana. http://lattes.cnpq.br/4004929606438427.

 

[4] O Coletivo NEGA (Negras Experimentações Grupo de Artes) o único grupo de Teatro Negro de Santa Catarina. Sua existência e ações extrapolam, porém, o âmbito teatral e ampliam-se na construção cultural da arte negra catarinense. Para realizar esta construção, atores e atrizes (hoje composto apenas por jovens mulheres negras, o Coletivo já integrou artistas homens ao longo de seus sete anos de existência) do Coletivo se formam para desenvolver um diálogo íntimo com a sociedade catarinense acerca de temas de interesse da população negra do Estado. O Coletivo NEGA nasceu há 7 anos de um projeto de extensão Criado pela Profª. Dra. Fátima Costa de Lima na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), buscando suprir a falta de representatividade para a população negra no campo do teatro. Influenciado pelo TEN (Teatro Experimental do Negro) fundado por Abdias Nascimento há 68 anos, no Rio de Janeiro. Hoje, com apoio do projeto de extensão, mas independe de professores, o grupo trabalha com administração e criação coletiva com Rita R.I, Fernanda Rachel, Thuanny Paes, Michele Mafra, Franco e Sarah Motta e tem como objetivo valorizar as produções teatrais de artistas negros, com destaque para as mulheres negras. Fonte: https://www.facebook.com/pg/coletivonega.

[5] GOMES, Nilma L. Sem perder a raiz - Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Minas Gerais: Autêntica, 2008.

[6] O neologismo criado aqui é cunhado como metáfora para expressar a minha inevitavelmente especificidade enquanto atriz negra que reflete sobre seu próprio trabalho no teatro e na palhaçaria. Mais informações ver: SANTOS, Adriana Patricia. Dos guetos que habito: negritudes em procedimentos poéticos cênicos. Tese (doutorado) PPGT-UDESC, Florianópolis, 2017.

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