Uma Palhaça no Puerpério
A pandemia esvaziou as ruas
da cidade e colocou-nos no primeiro lockdown há exatos 12 dias após o nascimento do meu segundo filho. No auge de um
puerpério, passei a ser tocada
fortemente também pelas questões de outras mulheres que, assim como eu, são mães e foram assoladas pela insegurança em
relação aos seus futuros e de seus filhos e que se viram imersas
em uma sobrecarga materna somada com o trabalho em confinamento.
Acredito que o ato de rir impacta na
percepção que temos de nós mesmas e pode ser um elemento de transformação ou um mecanismo de exclusão. Quantas
vezes o riso na palhaçaria clássica
já naturalizou violências e discriminações, não é mesmo? Quantas vezes já nos sentimos incomodadas com
determinadas piadas que insistem em reforçar
padrões de normalidade e colocar as diferenças a margem. Por outro lado,
há tanta potência naquele
riso que ri com a gente ao invés de rir da gente, naquele
tipo de riso que nos permite um mergulho em nós mesmas,
nas questões que nos atravessam, que nos revelam, que nos mostram nossas fragilidades abrindo caminho para que a gente reconstrua a nossa realidade. Esse é justamente o riso que tenho procurado, ainda que, muitas
vezes, o processo tenha suas dificuldades.
Guiada pelos impulsos da Hipotenusa Pressurizada, minha palhaça, mergulhei
no universo das mães na pandemia. Busquei
formas de me recriar, acreditando que, em meio a
este triste cenário, ainda é possível ser atravessada pelo riso, tê-lo como um
grande aliado para cruzar e ressignificar o momento.
Gradativamente comecei a dividir pedaços da minha realidade com o público em pequenos vídeos intitulados “Uma Palhaça no Puerpério” exibidos no canal do youtube “Hipotenusa Pressurizada”, e atrevi-me também a pequenas escritas.
Compartilho aqui alguns fragmentos:
Fragmento da cena “Momento Zen”:
“Hipotenusa aparece sentada de pernas
cruzadas se preparando para iniciar uma sessão
de meditação. Ao seu lado um bebê conforto. Um choro invade a cena, ela
resiste um pouco, mas lentamente abre
um dos olhos para espiar o que está acontecendo. O choro aumenta. Hipotenusa embala
o bebê com carinho e cuidadosamente retorna
para a postura de meditação.
Uma criança aparece chacoalhando seus
ombros pronunciando a palavra mãe de forma insistente. O chamado se repete algumas
vezes, a palhaça,
agora com semblante
cansado, atende o filho mais velho.
Hipotenusa faz uma nova tentativa de
uma prática zen, mas logo é interrompida por um balde de brinquedos que é derramado
sobre ela. A palhaça abre os olhos
incrédula,
dividida entre o desejo de seguir sua atividade e a necessidade de atender o filho, que segue tentando chamar sua atenção.”
Fragmento da cena “Quem Sabe Depois da Historinha”:
“Todo dia tudo muito parecido, o
cansaço vai chegando até os ossos enquanto o relógio insiste em girar mais devagar nesse horário, alargando o
tempo... e a hora de ir pra cama que não chega nunca!!!
O
bebê dorme. Devagarinho o coloco no berço. Ele está com os bracinhos pra cima, sinal
de que está em sono profundo
e que vai dormir por um bom tempo. Ufa!
Será que a gente namora hoje? (falo
em tom de brincadeira para o companheiro). Com
um sorriso cansado no rosto
ele responde: quem sabe depois da vigésima
historinha...
Vem filho
(para o mais velho) vamos contar
histórias pra dormir!
EU NÃO GOSTO DE DORMIR!!! EU NÃO SEI DORMIR!!! Grita ele insistente enquanto pula na cama.”
Fragmento da cena “Cadê?”
“Hipotenusa anda pela casa, de
repente lembra-se de algo e começa a procurar em todas as partes. Não encontra. Vai ficando preocupada, procura com
ênfase andando pelos cômodos do pequeno apartamento bagunçado.
Revira uma montanha de roupas por
dobrar e finalmente encontra o que procurava: o bebê.
Com um suspiro
de alívio Hipotenusa abraça forte o pequeno
e segue seus afazeres.”
E assim, de fragmento em fragmento, de cena em cena, passei
a rir do puerpério, a aliviar as tensões pandêmicas e a criar uma rede
digital de apoio. Os vídeos da palhaça me permitiram
transitar em diferentes aspectos pertinentes a relação maternidade real e romantização da mesma. As criações com a
Hipotenusa, hora relatando pedaços do meu cotidiano,
ora em criações fantásticas, ajudaram a transmutar diversas questões relativas à sobrecarga materna,
as quais me atravessavam durante
o puerpério em plena pandemia.
Há uma potência incrível no riso, olho para Hipotenusa e através dela olho para mim, rio dela
e assim consigo rir de mim com suavidade. De mãos dadas recriamos nosso mundo confinado, buscando um riso que agrega,
que constrói e que nos reconstrói.
Lolita Goldschmidt é a Palhaça Hipotenusa Pressurizada. Ela é over, ela é exagerada, mas seu coração é enorme. Nas idas e vindas dessa atrapalhada palhaça encontra alento na companhia da sua fiel e parceira mala Jussara. Hipotenusa esteve no puerpério há pouco e com ele surgiram muitas histórias para contar. Lolita Integra o NIC – mulheres palhaças e a Las Brujas cia de teatro e artes integradas. É doutoranda em educação pelo PPGEDU – UFRGS desde 2020, mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC – UFRGS (2015), graduada em Licenciatura em Teatro pela UFRGS (2008), Pós-graduanda do curso se especialização em Gestão Cultural SENAC EAD (2011), professora de yoga (2007) e tem experiência como atriz, palhaça, professora e pesquisadora.
(https://www.youtube.com/channel/UC2RbJCA73mFEdJaePCbCElg)
Esse texto integra a 5a Edição da Revista Palhaçaria Feminina, lançada em 2022, editada por Michelle Silveira da Silva.
Muito bom 😃
ResponderExcluirGente , que coisa linda ... eu já tinha lido e li por aqui e também por lá e todos os lados... novamente,História lindaaaa !!!
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