RITO DE PASSAGEM - PINGARAM LIMÃO NA OSTRA VIVA

 


Felícia de Castro (Bafuda)

Felícia de Castro é Mestra em Artes Cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC-UFBA) e atua como atriz, palhaça e pesquisadora ancorada no contato com as linhas de pesquisa em voz, criação e palhaçaria, transmitidas pelo Lume Teatro, em vivências com a cultura brasileira, e no encontro com a dança Butoh. Criou o curso-encontro anual intitulado Palhaças, bem vindas sois vós - Estudo Prático da Comicidade Feminina. É cofundadora do grupo de teatro Palhaços para Sempre e do primeiro curso técnico profissionalizante em palhaçaria da Bahia. Foi contemplada com os prêmios de ''Melhor Atriz'' (Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga) pela atuação no espetáculo de palhaçaria Jardim e com a bolsa ''Interações Estéticas – Residências Artísticas'' (FUNARTE) pelo projeto Palhaços e Canções - Expandindo Capacidades Criadoras.

e-mail feliciadecastro@yahoo.com.br

            Um dia, muito pequena, na pré-escola, teve um forte impulso de soltar o cabelo. O fez e saiu alegre e faceira, balançando suas madeixas. Em questão de segundos, veio uma professora horrorizada, gritando, e o amarrou rapidamente. Aquilo a marcou profundamente e assim manteve suas raízes: presas. Muitos anos e muitas tentativas de alisamento depois, já gente grande, pediram que soltasse seu cabelo. O Black Power ainda não era moda e negro não era assim tão lindo aos olhos preconceituosos da maioria. Foi um pouco dolorido, mas assim o fez, afinal, queria nascer, ansiava por uma retomada da escuta de seus impulsos mais recônditos, por uma consciência orgânica, e estava pagando um preço alto por esse ritual de iniciação... por esse retorno a si própria. Chorou cinco dias até nascer. Mas ao mesmo tempo que chorava, ria. E se contorcia até virar do avesso. E quanto mais se contorcia, mais riam dela. Até aquele momento nunca imaginou, nem por um segundo, que pudesse fazer alguém rir. Demorou, deu trabalho, ficou um tempo que nem molusco que abandona a carcaça, ou como diz Clarice Lispector, que nem quando pingam limão na ostra viva. Mas depois disso, ninguém mais a prendia. Se desescolarizou. Se desautomatizou. Desaprendeu. Transbordou. Atravessou um portal para outra forma de existência.[1]

Realmente nunca pensei que pudesse ser engraçada. Até que no ano de 1998, interrompi temporariamente o curso de Artes Cênicas em busca de novas informações e possibilidades de atuação.  Viajei pelo Brasil e no tempo que fiquei em João Pessoa fazendo um curso com Luiz Carlos Vasconcelos, conheci seu palhaço, o Xuxu. Esta arte não fazia parte do meu mundo cênico, me surpreendi com tanto amor e me encantei completamente com aquela expressão, mas, ainda assim, não pensei que pudesse fazer, ainda mais sendo mulher! Alguns meses depois conheci o Lume Teatro, em Brasília, através do espetáculo Cravo, Lírio e Rosa e da demonstração técnica sobre a construção do palhaço, ministrada por Ricardo Puccetti. A humanidade revelada por aqueles seres era desconcertante. Assistindo ao espetáculo saí da aura da magia  – sem perdê-la –  e tive a dimensão do quanto era um caminho alcançável tecnicamente[2]. Ou seja, era possível que eu, aquela ostra séria e sem graça, através de forte trabalho, alcançasse a capacidade de uma expressão cômica.

A historinha no início desse texto conta uma situação vivenciada no Retiro de Iniciação ao Clown e ao Sentido Cômico do Corpo[3] conduzido por Carlos Simioni e Ricardo Puccetti, em Salvador. O Retiro foi um divisor de águas na minha vida. Naqueles anos meus esforços estavam voltados para lidar com a desconexão psicofísica que vinha de bloqueios profundos. Um excessivo senso de controle impedia-me de me abandonar às sensações e de descobrir uma movimentação para além de comandos racionais. Após um ano, afastada do curso de Artes Cênicas, voltei então para Bahia com novas direções de trabalho estabelecidas e com a firme determinação de passar por uma experiência de imersão e iniciação. E, no embalo da certeza e da aventura, em agosto de 1999 trouxemos o Lume Teatro para nos iniciar nesta arte através de um retiro de dez dias[4]. Foi o oitavo e último Retiro realizado por eles. No diário, uma oração que revelava o intento e o clima da época: “[...] que possamos e que consigamos fazer muitas coisas bonitas, encantadoras, transformadoras de coração, que a gente ‘'chegue'’ nas pessoas, em seus espíritos.”[5]

O caráter de retiro, as inúmeras regras – como, por exemplo, permanecer em silêncio até a primeira sessão de trabalho da manhã – e a quantidade de horas de atividades, intensificava a concentração no trabalho. Eles explicaram como seria o trabalho, usando imagens que me davam um frio na barriga e quase um pânico de estar ali, mas me enchiam de confiança: “[Vai ser] como percorrer um túnel escuro até ver a luz; vão nos abrir, mas prometeram nos fechar no final.”[6] A vivência consistiu em um confinamento de dez dias em um local afastado da cidade. Além dos condutores Carlos Simioni e Ricardo Puccetti, das assistentes Rachel Scotti Hirson e Anna Cristina Colla[7], e dos dezessete atores participantes[8], havia apenas a presença de duas cozinheiras e o caseiro da casa de praia que alugamos para a vivência[9]. O trabalho se baseava em exercícios e dinâmicas que iam da exaustão física a brincadeiras que nos colocavam em situação de constrangimento. A imersão em quase vinte horas de trabalho diários e os confrontos físicos e psicológicos vivenciados, instauravam em nós uma sensibilidade extrema, que inevitavelmente, conduziam a um desmoronar das defesas: “E então você reage de uma forma como nunca esperou”, afirmou Simioni (1999, p. 122) em uma entrevista. Toda uma situação é criada para encararmos de forma segura a desmedida exposição que é necessária ao trabalho. Por exemplo: meu cabelo é crespo e bastante volumoso, e em toda minha infância e adolescência, eu era alvo constante de preconceito racial, de forma que, até esse momento, eu sempre o usava preso porque tinha vergonha dele. Uma das primeiras coisas que me aconteceu no Retiro foi soltarem meu cabelo. Inicialmente, foi terrível; aquilo me deixou num estado de exposição dolorido, mas depois, comecei a relaxar, e esse simples ato ocasionou mudanças em minha vida.

            A vivência proporcionou uma espécie de permissão interna para expor os lados mais obscuros. Fui descobrindo um enorme interesse e prazer com o grotesco, com o deformado, com o feio. Talvez uma necessidade de conhecer e trabalhar com um lado além da “menininha feminina, bonitinha, e meiga” que frequentemente era rotulada. No Retiro, houve duas experiências que plantaram a semente para continuar nessa pesquisa do estranho. A primeira foi no dia da dinâmica do bufão. No contexto do Retiro, Simi e Ric[10] explicaram que ele era o palhaço em estado bruto e durante a vivência nos incitaram a extravasar, ao máximo, emoções, que culminaram no encontro de nossos bufões. No exagero das tensões ocasionadas pelas deformações, caminhos musculares eram abertos e encontrava corporeidades grotescas estranhíssimas. Esta dança das emoções[11] foi o início do entendimento das emoções no músculo e da percepção desse mover afetivo como a base da criação. Amava descobrir o quanto meu corpo dançava, mesmo quando estava fazendo um número tradicional de palhaçaria. O “pensar afetivo do clown” Burnier (2001) é então desenvolvido a partir de uma memória corpórea desenvolvida com base nos estados sensíveis que surgem no processo iniciático do clown.  A segunda experiência foi no exercício do Picadeiro, no qual, supostamente, devemos mostrar nossas habilidades, mas o que está em jogo é a revelação, é estar num estado de sinceridade extrema e deixar sair o que está escondido. Num confronto cada vez maior, somos levados a conduzir menos racionalmente a improvisação e a nos mostrar inteiros. No meu Picadeiro, eu queria fazer coisas meigas e eles não esboçavam reação. Até que foram me cutucando a ponto de eu ficar brava. E me levaram a dançar um tango e isso acabou gerando uma reação hilária na plateia. Foi um grande salto no meu autoconhecimento expor meu lado agressivo, lado que eu tinha, geralmente, muita dificuldade em assumir. Foi nesse momento que ganhei o meu nome de palhaça:

[...] fui ficando braba. Era isso que eles queriam puxar de mim. A braba. Esse lado. [...] Fui ficando brabona e todo mundo ria. E eles foram conduzindo dizendo que era pra tirar a palhacinha de animar festa. E aí naquele estado eles pediram para eu dizer meu nome. Aí eu disse formiga atômica [era como meu avô me chamava quando eu criança e quase hiper ativa] que foi o que me veio. Depois Zuinca. Não. Risoflora. “A palhacinha feliz” eles debocharam.... Aí ''messiê'' Simi falou Bafuda. Bafuda. Bafuda. Bafuda. Bafuda. Eu detestei, é lógico. Mas o povo riu. E assim eu passei pelo meu picadeiro. Sem sofrer tanto, mas botando pra fora outros lados meus; ainda não sei direito o que fazer com tudo isso, mas são os tais estados que preenchem o clown, que recheiam todas as suas ações.[12]

 

            A entrada no mundo da palhaçaria foi um caminho de vencer a mim mesma. Uma nova consciência, nascida do colapso físico, da ausência de comunicação verbal, do novo olhar que o palhaço instaura, e da celebração de estados muito vivos e próximos de estados primitivos do ser, promoveu o contato com a organicidade, a verdade que eu tanto buscava e acreditava. Dessa forma, o prazer - premissa básica do palhaço que o conecta ao presente e faz com que os olhos do público grudem nele - , também foi uma conquista do meu caminho de palhaça plantada na nossa iniciação. A rigidez psicofísica causada pelas couraças, foi sendo substituída pela capacidade de “poder assumir uma conduta de humildade, de humanidade e de humor (os três H) e de poder abandonar-se a mim mesma e ao outro” (NAVARRO, 1995, p.64). Humanidade, humor, e humildade são tesouros, são joias preciosas para o trabalho da palhaçaria, pois temos queser muito gente” para exercer essa profissão[13].

Nestes dez dias, observando a transformação das pessoas, o olhar ficando transparente... [...] e percebendo cada vez mais a mim mesmo, tive uma dimensão do humano, como nunca tive; acho que nunca encarei o ser tão cruamente, e percebo que isto parte da aceitação de mim, da minha totalidade humana. Um trabalho profundo de percepção. [14] [...] É comovente ver as pessoas desarmadas, apenas sendo. Encantador ver a transformação que se deu esses dias, a luz que foi brotando em cada um, o amor que tomou conta de todos nós. Repletos de humanidade. Agora é por nossa conta[15].

 

Em uma conversa final Ric e Simi falaram sobre “o risco de falar”.[16] Explico. Todas as descobertas físicas e estados era muito recentes. A familiaridade com os estereótipos persistiria até à organicidade e capacidades descobertas no Retiro serem enraizadas no corpo, através do trabalho sistemático. Eles explicaram que começássemos com a respiração. A respiração está conectada com o vivo, com o corpo todo, com as emoções, ela está permeando tudo. Através da capacidade cada vez maior desse contato profundo consigo mesmo iríamos perceber o brotar dos sons, até, de acordo com o desenvolvimento e conhecimento da lógica de funcionamento dos nossos palhaços, seria possível encontrar uma lógica verbal que realmente nascesse dessa dimensão orgânica (Pensar com o pé). Escolhi não me apoiar na fala porque o que me comove na palhaçaria é, principalmente, a beleza do diálogo físico dotado de um coração e de um “olhar que derrama”. Mas essa escolha inclui sons. A poesia é das ações, e a voz, inseparável do corpo, é ação. Dessa forma, soltei a voz em choros, grunhidos e línguas inventadas, e fui surpreendida por vibrações pessoais, ventos de vozes de dimensões longínquas e desconhecidas. Um dos momentos mais fortes em nossa iniciação foi o referido dia em que destampei alguma “rolha secreta” e desatei a chorar e rir, sem parar, por muito tempo, me contorcendo em caretas, enquanto todos rolavam de rir. Aquele momento representou minha passagem; ali, as máscaras de Felícia amoleceram, e nasceu Bafuda. Entendo a ausência total de dúvidas quando decidi interromper por alguns anos todas as outras formas de fazer teatro para desenvolver minha palhaça pessoal. Percebo que, quando comecei a juntar meus pedaços, a me sentir inteira e aceitar-me, pude calar para ouvir os sussurros daquele novo ser. Permaneci em mim para escutar. Era tudo muito novo. O susto de já ser outra. A liberdade de não ser mais aquela. Continuei dançando. E, então, desse silêncio, fez-se o canto.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: Da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.

 

NAVARRO, Federico. Caracterologia Pós-Reichiana. São Paulo: Summus, 1995.

 

SIMIONI, Carlos Roberto. A Arte de Ator.  Revista do Lume, Campinas, UNICAMP, n. 1, p. 55-60, jul. outubro, 1998.

 

 


[1] Texto publicado no blog Palhaças, Bem Vindas Sois Vós (http://palhacasbemvindassoisvos.blogspot.com.br/2012/10/bafuda-florencia-organcia-risoflora.html)

[2] Esses eventos aconteceram em Brasília (DF),  em 1998.

[3] Apesar de a palavra “clown” constar no título do referido curso, tanto o Lume Teatro em seu fazer, quanto eu, utilizo as palavras palhaço e clown como sinônimos. Embora os termos possam ter raízes históricas diferentes, considero infrutífera e esgotada essa discussão, pois esses são apenas alguns dos inúmeros nomes, para essa função cômica. Por exemplo, na tribo da etnia Krhaô, a figura que tem princípios muito similares ao palhaço da forma como se configurou na Europa, e como tivemos acesso no Brasil, é chamado de Hotxuá. O que demonstra a universalidade, a ancestralidade, e a diversidade dessa função.

[4] Eu e João Lima, já trabalhando na tentativa de desenvolver o palhaço, nos engajamos na produção de trazer o Lume Teatro para Salvador em 1999, em parceria com David Lobo, e com um patrocínio parcial da Fundação Cultural do Estado da Bahia e o apoio da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Na ocasião além do Retiro de Iniciação ao Clown e ao Sentido Cômico do Corpo, trouxemos três apresentações do espetáculo Cravo, Lírio e Rosa, além de demonstrações técnicas.

[5] Frase de abertura do Diário do Retiro, 1999.

[6] Diário do Retiro, agosto de 1999.

[7] Atrizes integrantes do Lume Teatro desde 1995.

[8] Aicha Marques, Alexandre Luis Casali, Antônia Vilarinho, Carol Almeida, Davi Lobo, Demian Reis, Elaine Cardim, Felícia de Castro, Flavia Marco Antonio, Ivana Chastinet, João Lima, João Porto Dias, Kiliana Britto, Lúcio Tranchesi, Manhã Ortiz, Rafael Moraes, e Tânia Soares.

[9] Praia de Buraquinho (Lauro de Freitas    BA).

[10] Apelidos com que eram tratados Carlos Simioni e Ricardo Puccetti no Retiro.

[11] Burnier descreve possibilidades de exercícios no âmbito do “Técnico/Emotivo”: “expressar sentimentos com diferentes partes do corpo (cabeça, peito, quadril etc.)”, “passar de uma emoção à outra sem psicologismos, automaticamente”, “encontrar a “fotografia” de cada sentimento (as ações físicas essenciais que expressam cada sentimento. Passar de uma para outra automaticamente)” (2001, p. 213).

[12] Diário do Retiro, 1999.                                                

[13] Diário de trabalho, 2000.

[14] Trecho de carta escrita após o Retiro para Carlos Simioni, 1999.

[15] Diário do Retiro, 1999.

[16] Diário do Retiro, 1999.

Comentários

Postagens mais visitadas