UMA CARTA PARA MINHA AVÓ
Canta y no llores
Porque cantando se alegran
Cielito lindo, los corazones
Eram esses
os versos que a gente cantava, não é, minha vó?
Eu no piano
e a senhora na cantoria!
E a cada ay,
ay estridente seu, eu caía na risada!
E eu esperava
ansiosamente pelos seus ay, ay, ays…
Que saudade,
vó Eliza!
Saudade que
aperta o peito!
A senhora
foi palhaço, palhaço homem, o Xamego!
Até o
momento, que se sabe, a primeira mulher palhaça do Brasil.
A senhora
sabia disso?
Me refiro
aqui ao palhaço do circo moderno, o excêntrico, que era a grande atração dos
circos no final do século XX.
Pois sim!
Pelo que se sabe, a senhora foi uma pioneira!
Sabe? Foi no começo do ano de 2014, mergulhamos numa pesquisa grande sobre sua vida depois de contemplados num Prêmio Funarte Caixa Carequinha de fomento ao Circo - edital que infelizmente não existe mais e que proporcionava importantes projetos sobre a memória cultural do nosso país. Digo mergulhamos, porque ao meu lado estavam meus pais e grandes profissionais do cinema que se tornaram amigos e família.
Sim, sua
filha, Daisinha, está começando a gostar do Xamego!
Tem tentado
até imitar a sua voz, relembrar dos seus números!
E meu pai
comilão, continua com saudade da sua carne assada e da feijoada… e também
daqueles sambinhas nossos que faziam a alegria da vida da gente!
Falta a
senhora nessa roda, vó!
O tio
Aristeu, grande guitarrista, está mais quietinho do que antes. Acho que é
saudade da senhora, do filho Alexandre…
Todos nós
temos saudade né?
A verdade é
que descobri histórias e passagens da sua trajetória que nem imaginava.
E a cada
novidade, mais orgulho eu sentia e sinto da senhora, minha avó!
Desse
projeto de pesquisa nasceu o blog do palhaço Xamego e o documentário “Minha avó
era palhaço”.
Um filme que
tem percorrido o Brasil.
Até agora,
foram 77 exibições em 8 estados brasileiros e o distrito federal, Bahia, São
Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Goiás, Brasília, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas
Gerais…E temos convites até outubro de 2018! Parece magia, encanto… nem sei!
Nossa
“caravana” – sim, porque vamos sempre em família e depois das sessões do filme,
tem bate-papo com o público - parece até
o Circo Guarany, do seu pai João Alves, meu bisavô, que rodava de trem pelo lindo
país da gente na época áurea do circo no Brasil. Idos do comeco do século
passado.
Já fizemos um público de mais de 4500 pessoas.
Acredita?
Nem a gente!
Exibimos o
filme em festivais de circo, de teatro,
em centros culturais, nos SESCs, fizemos sessões em cinemas históricos, em
praças públicas, em escolas para crianças,
universidades, centros de convivência aos idosos, até maternidade… Vó, ocupamos
uma parede de igreja! Aliás, a senhora não vai acreditar!
Sim! Foi na
igreja que a senhora frequentava, Igreja Nossa Sra do Rosário da Penha. A
Igreja dos Pretos.
Lembramos
tanto da senhora. Das velinhas que acendíamos juntas! Minha mãe, eu e a
senhora!
Rezamos
muito pela senhora essa dia! Era nosso lugar sagrado, não era?
São passagens
memoráveis, impensáveis!
Como a
sessão em Belo Horizonte, no “Festival de Teatro Negro Benjamim de Oliveira”...
Em homenagem ao Tio Benjamim, como a senhora se referia a ele, conhecido como o
primeiro palhaço negro do Brasil…
O pessoal
abriu o evento dizendo “Salve, Maria Eliza Alves dos Reis”! A senhora acredita,
minha avó querida! Ser homenageada num evento onde o patrono é o Tio Benjamim,
que a senhora tanto admirava! Chorei muito aquele dia!... Sempre me emociono
muito!
Em Ouro
Preto, tem crianças do Circo da Gente, um projeto social, exibindo um
espetáculo com as Xameguinhas, em sua homenagem. Aqui em São Paulo, tem um
grupo incrível querendo montar uma exposição sobre a senhora, querem
reconstituir seu figurino de Xamego!
Ai, tanta
coisa! Muitos desdobramentos, vó!
Isso sem
falar dos bate-papos, que são uma revolução!
Estamos
vivendo momentos difíceis, mas de muita luta também no país e no mundo. Pra
quem viveu 98 anos e enfrentou duas guerras, imagino que a senhora saiba bem
como são essas fases…
Os debates
da gente vão desde a questão da memória do circo
brasileiro, do protagonismo negro nas artes, das questões da mulher, à questão
da palhaçaria e comicidade femininas, ou discussões de gênero... Pra senhora
ter ideia, tivemos uma conversa impressionante com alunos das Fábricas de
Cultura de São Paulo na Vila Nova Cachoeirinha, zona norte, crianças de 10 a 13
anos. Relembramos Nelson Mandela, conversamos sobre preconceito racial... Uma
vitória, vó! O preconceito ainda existe, mas estamos começando a falar sobre
ele mais abertamente. E o filme e a sua história tem contribuído e
proporcionado momentos de reflexão sobre esses temas tão caros.
E preciso te
dizer!
Sabe que na
última terça-feira, vivi mais um momento mágico…
Participei
do III Encontro Internacional de Mulheres Palhaças!
Sim, vó! Tem
muitas mulheres palhaças agora!
E as
mulheres palhaças estão à frente de um movimento bonito… Estamos construindo
nossa dramaturgia, mergulhando nos nossos universos, pensando a graça feminina…
Um processo coletivo, uma rede nacional e internacional também… Tem mulheres do
México, da Colômbia…Digo estamos, vó, porque também sou palhaça!
É mesmo! E
com muito orgulho! E com a senhora como referência!
E na última
terça-feira.
Revivi o
nosso momento mágico!
Cantei com a
senhora e com o Xamego – juntos numa só figura – o nosso Cielito Lindo!
Com direito
a um monte de ay, ay, ay!!!kkkkk
Vou tentar parar
de chorar quando assistir ao filme.
Vou lembrar
do tanto que a gente ria e se divertia juntas!
Vou guardar
esse recado da nossa cantoria: Canta y no
llores!
Acho que a
senhora sabe de tudo isso e está comigo o tempo todo, não é não?
Tenho
certeza!
Viva a
senhora, minha avó!
Viva o
Xamego!
Viva a
palhaçaria feminina!
E manda
beijo pra Tita, pro vô, pro Bisô, pro Tio Toninho e pra Bisa Brígida!
Mariana Gabriel é cineasta, jornalista e palhaça.
Diretora do curta-metragem Iara do
Paraitinga, dos documentários Circo
Paraki, Mar Português (gravado em
Lisboa, exibido na ESPN Brasil) e Minha
avó era palhaço, contemplado no
Prêmio Funarte Carequinha de 2014. Trabalhou como jornalista e produtora de
2007 a 2015, na ESPN Brasil e no programa Manos e Minas da TV Cultura. Hoje
retoma a história de sua família materna, que é tradicional de circo, família
Alves, do Grande Circo Guarany.
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