Dona Miúda para menores (Lendo as Palhaças do Brasil)

 

“Olha mamãe que legal, até vontade de ser palhaça!”

Escutei esta frase de uma mãe, que compartilhou o que sua filha disse quando estava assistindo um cabaré de palhaças a qual eu estava fazendo parte e isto me fez refletir, precisamos disto, as meninas precisam disto, referência, inspirações. Ainda hoje é muito difícil ver mulheres palhaças em apresentações de circos de lona, sendo estes, muitas vezes, apenas o que chega em pequenas cidades ou até mesmo nas periferias das grandes. Desta forma, ainda temos muitas meninas que tem como referência apenas palhaços homens. Mas não é na palhaçaria que esta referência apenas masculina é tão forte, muitas profissões ainda são vistas como “coisas de menino”. Isto foi o que inspirou a ideia do projeto “Dona Miúda para Menores”.

Sou Fernanda Missiaggia, palhaça da Cia O Que Será de Nós?! de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, iniciei minha caminhada na palhaçaria na Universidade Estadual de Londrina, onde cursei Artes Cênicas. E esta vontade de fazer e ser palhaça veio de referências, assistindo palhaças no FILO (Festival Internacional de Londrina), sendo estimulada na pesquisa do cômico pela minha então professora Adriane Gomes. Depois de iniciar a prática não consegui mais parar.

Após a graduação em Londrina, voltando a minha cidade, fundei junto com meu amigo Bruno Cavalcanti a Cia O Que Será de Nós?! para seguirmos com a pesquisa em torno do cômico e, principalmente, da palhaçaria. Estreamos em 2016 o espetáculo Adondedormem, um duo de palhaço e palhaça, para rua, que teve direção do Ricardo Puccetti e que circulou por muitas cidades e estados, alcançando lugares muito afastados, em que também presenciei os olhares atentos e admirados de meninas que nunca tinham visto uma palhaça, mulher, em cena.

O próximo espetáculo da Cia veio de uma inquietação minha, queria fazer um solo de palhaça, um projeto que falasse de mulheres e para mulheres. Busquei a minha antiga professora e, agora, diretora e amiga, Adriane Gomes, que topou dirigir o espetáculo “Dona Miúda para Maiores” que deu o início nesta pesquisa da valorização das mulheres, mas neste momento, em um formato adulto. Este projeto estreou em 2019 em São José do Rio Preto e trouxe temas como menstruação, aborto, masturbação, temas que envolvem e causam identificação com as mulheres da plateia.

Este espetáculo adulto fez com que eu quisesse ainda mais alcançar também as crianças, surgindo assim o projeto “Dona Miúda para Menores” que foi aprovado e pôde ser realizado por meio do PROAC editais de Circo, em 2022. Sendo este o projeto que trago aqui para esta reflexão, compartilhando todo o seu processo de nascimento. Tudo isto descrito acima foi a gestação dele, foi como ele foi crescendo aos poucos dentro de mim.

Após a contemplação neste edital iniciamos o processo de pesquisa, começando com conversas com a diretora (Adriane Gomes) e as orientadoras (Naomi Silman e Marília Ennes), desta conversa definimos que o trabalho seria em um formato para rua, com o objetivo de alcançar lugares mais periféricos, buscando este público que pudesse ter menos referências de grandes mulheres do mundo.

Iniciamos também o levantamento de livros infantis que falava sobre mulheres. Usamos os livros: “Grandes Mulheres que salvaram o Planeta”, “Mulheres incríveis que mudaram o mundo”, “Extraordinárias Mulheres que Revolucionaram o Brasil”, “As Cientistas: 50 mulheres que mudaram o mundo”. “Coisa de menina”, “Coisa de menino”, “Tayó em quadrinhos”, dentre outros, livros que contam as histórias de mulheres, que falam sobre preconceitos e machismos, muitos que vivenciamos até hoje.

A partir destas leituras escolhemos objetos que serviram de estímulo para o jogo da palhaça, como: caderno, trena, esqueleto, fitas, régua, bola de futebol. Todos objetos que se relacionavam com as histórias destas mulheres: professoras, escritoras, astronautas, atletas, radialistas, artistas, etc. O jogo com estes objetos aconteceu na prática, usando e transformando eles para contar a histórias de algumas mulheres da história do mundo e do Brasil.

A escolha de quais mulheres iríamos trazer para o roteiro foi o mais desafiador, buscamos nomes desconhecidos e nomes famosos, representatividade e diferentes profissões, até chegarmos em: Marie Curie, Valentina Tereshkova, Marta, Serena Willian, Eugenie Clark, Maria Lenk, Teresinha Guilhermina, Marlene e Ermilinha Borba. Citamos também outras artistas, como Gal Costa, Liniker, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro. Todas estas histórias contadas com a leveza do olhar de uma palhaça, Dona Miúda, trazendo a ludicidade e a brincadeira das crianças como essência no roteiro.

Outro grande objeto que sempre esteve presente foi uma bicicleta, a ideia de uma palhaça, passeando na rua com sua bicicleta repleta de objetos, que encontra uma plateia para ouvir o que são coisas de meninas, foi o fio condutor da dramaturgia. Ao final Dona Miúda percebe que assim como estas grandes mulheres, existem muitas outras, heroínas que não precisam de capa, que são de pele e osso, e que nos inspiram. Após esta descoberta a palhaça percebe a importância de continuar disseminando estas histórias pelo mundo e volta para sua bicicleta, partindo para encontrar novas pessoas para ouvir suas histórias.

A estreia deste trabalho aconteceu em Bauru, novembro de 2022, em uma praça periférica, com presença de crianças, adultos e idosos. Perceber o olhar de surpresa, de identificação e reconhecimento na plateia, durante cada história contada, fez com que percebêssemos que o que buscamos com este projeto tinha se concretizado. Meninas que perceberam que poder se tornar astronautas, meninos que notaram que a melhor jogadora de futebol do mundo é uma mulher, senhoras que lembrando das radialistas. Mulheres que se identificaram quando a Miúda traz as dificuldades e preconceitos que vivemos até hoje em nossa sociedade.

Agora, após este nascimento, o espetáculo segue como um bebê, a engatinhar e se inspirar, compartilhando a história de grandes mulheres do mundo, para também mostrar que todas somos grandes e importantes também.


Autora: Fernanda Missiaggia Hernandes Nucci - Palhaça Dona Miúda - São José do Rio Preto/SP 

Currículo: Bacharel em Artes Cênica na Universidade Estadual de Londrina, pós-graduada em Gestão Cultural no SENAC, fundadora da Cia O Que Será de Nós?! Tem como foco principal de sua pesquisa o cômico, principalmente na figura da palhaça. No seu repertório, como palhaça, atuou nos espetáculos "Adondedormem" (direção Ricardo Pucceti), "Dona Miúda para Maiores" e " Dona Miúda para Menores", ambas com direção de Adriane Gomes. 

Fotos: Milena Aurea

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