Entrevista com Lily Curcio, a Palhaça Jasmim


Lily, vamos começar esta entrevista, você nos falando sobre a sua infância:

Eu nasci em Buenos Aires, Argentina, interior da província da grande Buenos Aires. Cresci na cidade que se chama Lomas de Zamora, depois mudei aos 7 anos para Córdoba, uma província no centro de Argentina. Minha vida foi com brincadeiras que tinham a ver com bonecas, eu tinha uma característica que era ler muito, eu adorava ler, adorava entrar em mundos imaginários, fui e sou uma leitora que não se cansa, quer sempre mais.

Pra mim foi muito forte o fato de me distanciar de meus avós, primos e primas, quando tive que mudar por motivos de trabalho “laborais” do meu pai, para Córdoba, Argentina. E aí fiquei sozinha, e aí nasce essa coisa de estar lendo e de alguma maneira me separando do mundo, que era triste porque não tinha com quem brincar, nem meus avós que eu amava.

Eu nunca tinha uma tradição de assistir espetáculos na minha família, meus pais não tinham tradição de ir para o circo, nunca fui ao circo na minha infância e juventude, só depois de adulta, muitos anos depois de descobrir minha palhaça, fui assistir espetáculos de circo.Eu só estava em contato com a arte por meio da dança, eu estudei dança clássica,  quando era pequena, depois na adolescência dança clássica e contemporânea, e dança espanhola, e eu sempre ficava magicamente seduzida por estar no palco, tinha alguma coisa em mim que me falava que eu não deveria estar sentada na poltrona do teatro como espectadora, e sim que eu devia estar no palco, em cena.

Não sabia como, mas era uma sensação que me perseguia muito fortemente. Já de adulta, casada e com filhos, aconteceu algo determinante quando estava assistindo, no Teatro Colón , o mais importante teatro de Buenos Aires, o ballet Don Quixote, eu  sentada na minha poltrona, tive a sensação novamente, mas muito mais forte, muito marcante, de que eu não poderia continuar sendo uma espectadora e sim deveria estar no palco dançando, sei lá o que fazendo.

E depois aos poucos fui criando um grupo de dança teatro de uma forma amadora, com algumas amigas na argentina, porque eu necessitava fazer alguma coisa artística. Eu sou antropóloga, eu adoro e adorava a minha profissão mas alguma coisa estava faltando na minha vida.

Então desde minha infância, eu posso falar que não teve quase nenhum estímulo da minha família para que eu fosse artista, imagina nesse momento, além disso ser artista não dava dinheiro, na cabeça das pessoas. Mas, depois de muitos anos, já morando em Búzios, no Brasil, eu senti que era esse o meu destino na vida, e não parei, e não vou parar.

E na sua infância, tinha contato com algum artista?

É isso! Na minha família os únicos artistas que conheci, foram dois artistas frustrados, foram meus avós. Meu avô foi cantor de ópera, mas por um problema de saúde, ele não pode avançar na sua carreira e minha avó tocava piano, de uma forma muito linda e emocionante, mas , por problemas econômicos, venderam seu piano e ela nunca mais tocou. Essas foram as únicas referências artísticas que eu tinha, mas minha família se caracterizava sempre, em alguns momentos do ano, sobretudo no final do ano, na passagem do ano, toda a minha família se fantasiava e brincava e fazia números na casa da minha bisavó, tios, avós, primos cantavam, dançavam e a nós assistíamos esses espetáculos. Esses eram os únicos momentos artísticos que aconteciam na minha família.

 

E como foi que você teve contato com a palhaçaria?

Uma vez no LUME já no retiro do clown, durante 12 dias ou 14 dias, onde literalmente fomos retirados do mundo, nasce Jasmim. Nasce com uma força, uma profundidade e um sentido na minha vida, que eu falo que foi um divisor de águas na minha existência, ela me fez compreender todas as questões que tinham acontecido na minha vida, ela me faz entender o porquê e para que cada uma das experiências que tinha passado, então foi marcante, algo que foi sendo metabolizado no decorrer dos tempos.

Eu defino isso como uma droga sagrada, depois do retiro do clown eu queria mais, queria saber mais, queria que Jasmim crescesse, e a partir daí decido ir  para as fontes da palhaçaria .

Então fiquei sabendo da Escola Internacional de Philippe Gaulier que, nesse momento estava em Londres, e também fiquei sabendo por meio do Ricardo Pucceti do Lume, que existia um grande palhaço italiano Nani Colombaioni, assessor de Frederico Fellini, e aí eu fui. Me joguei, aceitei esse desafio da vida, fiz a escola do Gaulier e depois fui trabalhar, com a pretensão de que Nani Colombaioni, dirigisse meu primeiro solo, o espetáculo que se chama “O Acrobata”.

Esse foi o início dessa trajetória que serviu para me dar forças e pisar firme. E daí achei, ou fui achada por meu instrumento musical, uma concertina, que descobri em uma vitrine no último dia da minha estadia na Itália em Roma, aí comprei imediatamente sem saber absolutamente nada de música. Voltando para o Brasil, depois tive oportunidade de estar estudando e fazendo oficinas com Angela de Castro, que foi um contato muito profundo, muito especial, terminamos sendo muito amigas. Depois outra pessoa me marcou a nível profissional foi a Sue Morisson, que fizemos no LUME duas oficinas com ela.

A oficina dela é “O clown através da máscara” foi pra mim também foi algo muito marcante e desestruturante e me deu mais ferramentas na minha trajetória como palhaça.

A experiencia com meu mestre Nani Colombaioni, que foi muito especial, porque esse velho e amado palhaço, foi pra mim uma figura incrivelmente importante na minha vida. 

Após o falecimento do Nani, a relação com a família Colombaioni continua especificamente com um dos filhos dele, Leris, e no ano seguinte eu vou trabalhar no circo de Leris Colombaioni, o Circo Ercolino.

Trabalhar no circo, foi uma experiência única, porque a cada noite se apresentava um espetáculo diferente, nunca se repetem as apresentações, e eu entrava no picadeiro em um estado de constante de alerta e de busca, porque eu não sabia o que ia acontecer, Leris   falava do “canovaccio” ou roteiro de cada noite apenas umas horas antes. Eu recebia o figurino,  peruca,  sapatos e as indicações do que eu tinha que falar e fazer. Isso pra mim foi um desafio incrível porque, nos primeiros momentos eu falava muito pouco italiano, e eu tinha que decorar em poucos minutos o que ia falar e fazer, provocando  um estado de picadeiro constante, onde você mergulha dentro de si, para que apareçam coisas, gestos, vozes e olhares, que estão alí guardados dentro de você e que você precisa tirar dessa profundidade e colocar na superfície, em cena, dando uma incrível naturalidade e espontaneidade que eu quase desconhecia, porque com essa disciplina do ator do LUME, de estar ensaiando e passando muitas vezes cada cena, no circo era completamente diferente pra mim, porque o resto da trupe sabia perfeitamente cada fala, cada gesto, e essa foi uma experiência marcante e enriquecedora.

E assim continuo minha trajetória de palhaça e fui descobrindo aos poucos que essa minha palhaça, minha cômica podia se transformar e brincar de outras figuras, de outros estados A mestra Sue Morrison fala que a gente precisa estar se confrontando com as nossas facetas, todas as nossas caras, e para isto precisamos ter coragem, sem ter medo de confrontar com as nossas partes mais obscuras, como falaria Jung, nossa sombra.

Alfo fundamental na trajetória de para ser palhaça, podemos estar em algum momento brincando de ser uma Augusta, uma boba, uma estúpida, e também uma branca, uma mandona, uma perversa, uma autoritária, isso é super importante pra mim, navegar entre esses estados.

Sintetizando então, e que tem a ver também com a resposta da pergunta número 3: Como você entrou em contato com a palhaçaria?

Primeiro no LUME com Ricardo Pucetti e Carlos Simioni, depois com Philip Gaulier, depois com Nani e Leris Colombaioni, Angela de Castro, com Sue Morrison. Esses para mim foram os mais importantes mestres e fontes da palhaçaria, a partir daí eu posso falar que estou fazendo meu modo de viver de ser palhaça, não faço outra coisa.

Atualmente estou fazendo muitas direções de espetáculos, e uma coisa que eu quero destacar, é que eu demorei muitos anos para me decidir a ministrar oficinas, compartilhar meus conhecimentos, porque acho que é uma função muito difícil, profunda e as vezes perigosa. Estar iniciando um palhaço/a/,e, significa tratar de descobrir as couraças de cada  criar um ambiente propício para se descobrir, e não qualquer pessoa pode ter uma estrutura psíquica ou espiritual para estar a frente a um grupo de alunos que estão querendo ser palhaços. Isso para mim é super importante.

Minha vida artística me levou a estar atuando e participando de muitos eventos internacionais, tive a sorte de viajar pelo mundo, lugares super diferentes, lugares de apresentações muito diversos, favelas, hospitais, campo de refugiados, de Kosovo, da guerra de Kosovo, na Suíça, Noruega, em Taiwan, Austria, inúmeros países de América Latina, etc. . Onde eu atuo nesse momento? Em qualquer lugar que me chamem, aí estou, aí eu vou. 

Fale-me sobre a sua trajetória profissional, aqui no Brasil:

Uma vez que chego no Brasil, com alguns pedaços de espuma, com algumas cabeças de bonecos e títeres meio terminados, começamos a trabalhar com nosso primeiro espetáculo de bonecos “Espalhando sonhos”, onde a gente também contracenava com os bonecos. Eu não tinha nenhum tipo de conhecimento do que era ser palhaça, clown,  em 1994 chega na cidade de Cabo Frio, RJ, chega um pessoal que vai dar um curso, e esse pessoal era o Teatro de Anônimo. E como geralmente não acontecia nada cultural em Búzios, a gente foi e fizemos uma pequena oficina com eles, onde aprendemos malabares ou como subir numa perna de pau, no último dia Márcio Libar, que era parte do Teatro de Anônimo, deu uma proposta pra gente: - “Ah eu tô querendo fazer um exercício com vocês, de clown”. Eu não tinha ideia do que era isso, mas aceitei e fizemos uma pequena brincadeira, e imediatamente ele falou que estava indo realizar um retiro de clown no LUME, Campinas/SP. E eu confesso que era a primeira vez que eu escutava a palavra clown, e a palavra LUME que eu não tinha nem ideia do que significava, e claro Campinas/SP que eu não conhecia.

Mas nesse momento, como esse exercício dado pelo Márcio Libar deu como um bichinho de curiosidade, uma coisa que eu não podia deixar passar na minha vida. Perguntei pra ele, e ele me deu um número de telefone. Nessa época em Búzios, não tínhamos nem telefone, nem celular, nem fax !!. Utilizávamos o telefone em uma cabine na praça de Búzios, com esses postes com uma cabine pequenina. Então eu liguei e falei pelo telefone, pedindo informações de como era esse curso de clown. Me deram o telefone da Unicamp, e lá ninguém soube me responder, mas insisti até conseguir o telefone do LUME e eles me explicam que o retiro vai acontecer em janeiro de 1996, e tinha que escrever uma carta de intenção e enviar pelo correio. Imediatamente eu fiz, e eu enviei. 

E como eles iam me avisar? A gente não tinha telefone !!! Então contatei uma senhora vizinha de Búzios que tinha telefone, e depois de um tempo ela me avisa que tínhamos sido selecionados para fazer o retiro do clown do LUME.!!! OBA !!!!

Também nessa época já tínhamos nos relacionado com o Teatro de Anônimo, nasceu uma amizade muito profunda com eles e o João Artigos, Shirley, Regina e Angélica também tinham sido selecionados. E com a nossa Kombi toda desenhada, passamos pelo Rio pegamos eles, e viajamos  até Barão Geraldo, na sede do LUME.

A minha vantagem, para o retiro do Clown foi que, como eu não tinha ideia nenhuma do que ia acontecer aí dentro, eu entrei virginalmente e disposta a tudo. Eu não tinha nada a perder, eu já tinha perdido muita coisa na minha vida pessoal, então eu entrei totalmente disponível. 

Lily, conte-nos o que é ser palhaça pra você?

Ser palhaça, foi encontrar um sentido na minha vida, saber o porquê e para que, eu tinha que estar nesse mundo. Ser palhaça é um compromisso enorme comigo primeiro e para com a humanidade, o público, por isso pretendo tocar o maior número de pessoas possíveis.

Não importa de que lugar, de que gênero, de que religião, de que política. Me interessa tocar o coração, fazer cócegas no coração das pessoas.

Ser palhaça pra mim é entrar num estado de liberdade que não tem como comparar com outro estado, principalmente pra mim, e tratar de elevar a consciência das pessoas que entram em contato com Jasmim.

Ser palhaça é poder emocionar, contagiar no bom sentido, poder provocar, poder fazer com que as pessoas questionem seus padrões de conduta. Ser palhaça é tocar o céu com as mãos. 

Você sente que tem alguma missão como palhaça?

Sim, para mim ser palhaça é uma missão na vida, eu compreendi isso a pouco tempo de descobrir essa figura, essa presença que estava habitando dentro de mim. Pra mim a missão da Lily como artista e palhaça, é elevar a espiritualidade no público, parece muito prepotente, mas é assim. A missão do artista é elevar a consciência do público. Seja um, seja 10, seja mil, seja um milhão. Eu sempre falo que eu pretendo cada vez que entro no palco, no picadeiro, na cena, eu pretendo tocar o coração, fazer cócegas no coração do público, por isso considero essa missão de ser palhaça, muito séria, é sagrada.

Uma vez um xamã me falou que o único pecado que pode estar cometendo um ser humano, é não escutar o chamado da vida, não escutar essa missão para a qual estamos sendo chamados. Então o meu chamado a minha missão é ser palhaça, e eu estou escutando o tempo todo esse chamado. 

Você tem algum projeto que coloque a mulher como protagonista?

Em todos os meus projetos, eu me coloco como um ser humano. Procuro ir além dos paradigmas, das coisas estabelecidas, das fronteiras e dos limites do pensamento. E cada vez que eu me coloco em cena, eu procuro abarcar e compreender, abraçar todas as minhas facetas seja como mulher, a parte masculina e feminina que eu sou, a parte angelical e diabólica que eu sou, eu pretendo dar uma visão holística, mas também eu acho que colocando a sensibilidade e poesia, que acho que muitas mulheres palhaças temos, esse protagonismo da mulher é muito importante.  Não para dividir, mas para reunir, incluir. Se trata disso. Acho que nossa cultura e sociedade estão nos empurrando, pressionando para que continuemos nos dividindo tanto nos conceitos, como nas tradições e acho que nesse momento tão difícil da humanidade, é preciso reunir. Aceitando as diferenças e as semelhanças e conviver com isso. 

Lily, quais as mulheres que lhe inspiram?

Vou falar de mulheres palhaças, pelo menos mulheres artistas que conseguiram me emocionar e me fazer rir. Uma delas é Lucille Ball, eu quando era criança assistia o programa na televisão “O Show de Lucy”, e Lucille Ball me inspirava e me divertia muito. Essa foi uma mulher que me marcou muito, a outra, falando de mulheres cômicas e palhaças foi Niní Marshall que foi uma cômica, palhaça e atriz argentina, ela foi considerada a versão feminina de Charles Chaplin na América Latina. Ela era incrível, começou fazendo rádio na Argentina, e depois se transformou numa das protagonistas no cinema argentino e latino-americano, e era incrível o seu poder de transformação e suas falas. Ela também escrevia os roteiros dela, era uma mulher impressionante, e eu indico a assistir os filmes de Niní Marshall.

E uma outra que foi marcante para mim, pela história e que se relaciona comigo, é Giulietta Masina. Eu descobri ela, muito avançada na minha idade, quando a Jasmim já tinha nascido, pouco tempo de nascida, e muitas pessoas falavam que eu me parecia com ela, e eu realmente não sabia. Eu ficava com muita vergonha, quando amigos e palhaços do Brasil me falavam isso, depois eu tive que assistir a Giulietta Masina em La strada da vida, para entender o que acontecia. E os caminhos da vida me levaram a me encontrar e a trabalhar com Nani Colombaioni na Itália, e essa é uma história que sempre conto que foi muito marcante pra mim.

No primeiro dia de trabalho com Nani, em 1996, ele me pergunta o que significava meu nome, como eu poderia estar traduzindo para o italiano o nome de Jasmim. E eu realmente não sabia, então comecei a dar definição pra ele, que Jasmim era uma flor pequenina, branca, que o perfume dessa flor acariciava a alma das pessoas que estavam a volta dela. E aí imediatamente ele ficou pensando e me pergunta “Lily você sabe o que significa, Jasmim em italiano?,  eu respondo negativamente, e imediatamente Nani me diz:  “ Gelsomina é um Jasmim”.  Depois descobri que esse era o nome de Giulietta Masina no filme La strada da vida.

Então imagina o que isso significa, Gelsomina, Jasmim, Giulietta Masina, Lily, com muito respeito pelo amor de Deus. Tem muito a ver comigo. O ano de meu nascimento em 1954 foi o ano que o filme La strada da vida ganhou um Oscar, como melhor filme estrangeiro. E a partir daí também, essa cena de Anthony Quinn quebrando as correntes, com Giulietta Masina ao lado dele, como partner, uma sombra, ela fica brilhando o tempo inteiro, foi também a inspiração para uma cena do espetáculo que participei, A-la-pi-pe-tuá. Então essas foram as mulheres que me inspiraram na vida artística.

 

Essa entrevista foi dada pela artista Lily Curcio, para o projeto do livro "Somos Palhaças", editado por Michelle Silveira da Silva. 

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