Uma Palhaça no Puerpério

Lolita Goldschmidt escreveu um texto para a 5a edição da Revista  Palhaçaria Feminina, e hoje nó viemos compartilhar, não só o texto na íntegra, mas também uma parte inédita que complementa o texto, como um presente para as palhaças mães que estão passando também por processos criativos em meio a experiência da maternidade.
Boa leitura! 


Introdução 

Quando a pobreza de riso nos toma e o riso parece passar longe dos nossos contornos, fato recorrente para mulheres mães com filhos pequenos, intensificado pela insegurança que a situação de pobreza carrega consigo, pensar no mesmo como um instrumento de transformação pessoal é desafiador. 
Naquele puerpério, em plena pandemia, pouco ou quase nenhum riso fazia parte do meu cotidiano. Faltava, além da perspectiva de uma possível normalidade financeira ou profissional, o próprio riso, faltava ainda, momentos de auto cuidado e de relaxamento. Como poderia, então o riso ser o impulsionador de alguma transformação em meio a tamanha pobreza de riso?
Recordo de ser transpassada por uma sensação de angústia por, além da instabilidade financeira, não conseguir vislumbrar um modo de seguir desenvolvendo meu fazer artístico. Tal angústia me impulsionava a refletir sobre possibilidades de alguma ação no campo das artes, não apenas pelo fazer artístico ser meu trabalho e uma das minhas fontes de renda, sobretudo, por representar minha escolha de vida. 
Incentivada por uma amiga, comecei a recriar minha atuação neste campo de forma despretensiosa, através de pequenos vídeos de palhaçaria feminina, intitulados “uma palhaça no puerpério” . Não se tratava de uma forma de empreender profissionalmente na área digital, mas um modo de exercitar, em alguma medida, minhas práticas artísticas e, pelo menos, sossegar uma das tantas angústias do momento. 
Muitos artistas estavam investindo no campo digital como modo de se manterem ativos e seguirem seus trabalhos no formato online, mas para mim, não era possível investir em equipamentos, tampouco era possível ter um espaço razoavelmente silencioso para gravações que pretendessem ser profissionais. Estávamos confinados pai, mãe, um filho de dois anos e um bebê recém-nascido em um pequeno apartamento de 48m². Eu, assim como coloca Taís Ferreira, ao observar o performar de sua filha no período pandêmico, também “assisti o tempo se dilatar em dias intermináveis e meses curtos (um jargão pandêmico), e o espaço físico da vida cotidiana diminuir abruptamente para alguns cômodos de um apartamento” (FERREIRA, 2021, p.218), o que intensificava a sensação de ansiedade do período. No entanto, os impasses para as gravações, os quais eram desafiadores, bem como os percalços do cotidiano foram transformados em inspiração para as mais inusitadas narrativas. 

Uma palhaça no puerpério 

Inicio esta escrita em plena pandemia da covid 19 em um Brasil assolado pela insegurança e medo, ainda sem perspectiva de normalidade. Em meio a luta pela sobrevivência diária que, para mim, passou a evidenciar as dificuldades de uma vida “sem garantias” e as fragilidades de ser artista no país, ficou cada vez mais difícil sorrir.

A pandemia esvaziou as ruas da cidade e colocou-nos no primeiro lockdown há exatos 12 dias após o nascimento do meu segundo filho. No auge de um puerpério, passei a ser tocada fortemente também pelas questões de outras mulheres que, assim como eu, são mães e foram assoladas pela insegurança em relação aos seus futuros e de seus filhos e que se viram imersas em uma sobrecarga materna somada com o trabalho em confinamento.

Acredito que o ato de rir impacta na percepção que temos de nós mesmas e pode ser um elemento de transformação ou um mecanismo de exclusão. Quantas vezes o riso na palhaçaria clássica já naturalizou violências e discriminações, não é mesmo? Quantas vezes já nos sentimos incomodadas com determinadas piadas que insistem em reforçar padrões de normalidade e colocar as diferenças a margem. Por outro lado, há tanta potência naquele riso que ri com a gente ao invés de rir da gente, naquele tipo de riso que nos permite um mergulho em nós mesmas, nas questões que nos atravessam, que nos revelam, que nos mostram nossas fragilidades abrindo caminho para que a gente reconstrua a nossa realidade. Esse é justamente o riso que tenho procurado, ainda que, muitas vezes, o processo tenha suas dificuldades.

Guiada pelos impulsos da Hipotenusa Pressurizada, minha palhaça, mergulhei no universo das mães na pandemia. Busquei formas de me recriar, acreditando que, em meio a este triste cenário, ainda é possível ser atravessada pelo riso, tê-lo como um grande aliado para cruzar e ressignificar o momento.

Gradativamente comecei a dividir pedaços da minha realidade com o público em pequenos vídeos intitulados “Uma Palhaça no Puerpério” exibidos no canal do youtube  “Hipotenusa Pressurizada”, e atrevi-me também a pequenas escritas.


Compartilho aqui alguns fragmentos:

Fragmento da cena “Momento Zen”:

“Hipotenusa aparece sentada de pernas cruzadas se preparando para iniciar uma sessão de meditação. Ao seu lado um bebê conforto. Um choro invade a cena, ela resiste um pouco, mas lentamente abre um dos olhos para espiar o que está acontecendo. O choro aumenta. Hipotenusa embala o bebê com carinho e cuidadosamente retorna para a postura de meditação.

Uma criança aparece chacoalhando seus ombros pronunciando a palavra mãe de forma insistente. O chamado se repete algumas vezes, a palhaça, agora com semblante cansado, atende o filho mais velho.

Hipotenusa faz uma nova tentativa de uma prática zen, mas logo é interrompida por um balde de brinquedos que é derramado sobre ela. A palhaça abre os olhos incrédula,

dividida entre o desejo de seguir sua atividade e a necessidade de atender o filho, que segue tentando chamar sua atenção.”

Fragmento da cena “Quem Sabe Depois da Historinha”:

“Todo dia tudo muito parecido, o cansaço vai chegando até os ossos enquanto o relógio insiste em girar mais devagar nesse horário, alargando o tempo... e a hora de ir pra cama que não chega nunca!!!

O bebê dorme. Devagarinho o coloco no berço. Ele está com os bracinhos pra cima, sinal de que está em sono profundo e que vai dormir por um bom tempo. Ufa!

Será que a gente namora hoje? (falo em tom de brincadeira para o companheiro). Com um sorriso cansado no rosto ele responde: quem sabe depois da vigésima historinha...

Vem filho (para o mais velho) vamos contar histórias pra dormir!

EU NÃO GOSTO DE DORMIR!!! EU NÃO SEI DORMIR!!! Grita ele insistente enquanto pula na cama.”

Fragmento da cena “Cadê?”

“Hipotenusa anda pela casa, de repente lembra-se de algo e começa a procurar em todas as partes. Não encontra. Vai ficando preocupada, procura com ênfase andando pelos cômodos do pequeno apartamento bagunçado.

Revira uma montanha de roupas por dobrar e finalmente encontra o que procurava: o bebê.

Com um suspiro de alívio Hipotenusa abraça forte o pequeno e segue seus afazeres.”

 

E assim, de fragmento em fragmento, de cena em cena, passei a rir do puerpério, a aliviar as tensões pandêmicas e a criar uma rede digital de apoio. Os vídeos da palhaça me permitiram transitar em diferentes aspectos pertinentes a relação maternidade real e romantização da mesma. As criações com a Hipotenusa, hora relatando pedaços do meu cotidiano, ora em criações fantásticas, ajudaram a transmutar diversas questões relativas à sobrecarga materna, as quais me atravessavam durante o puerpério em plena pandemia. uma potência incrível no riso, olho para Hipotenusa e através dela olho para mim, rio dela e assim consigo rir de mim com suavidade. De mãos dadas recriamos nosso mundo confinado, buscando um riso que agrega, que constrói e que nos reconstrói.


Vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=-8PQvMBpW74 






Lolita Goldschmidt é a Palhaça Hipotenusa Pressurizada. Ela é over, ela é exagerada, mas seu coração é enorme. Nas idas e vindas dessa atrapalhada palhaça encontra alento na companhia da sua fiel e parceira mala Jussara. Hipotenusa esteve no puerpério pouco e com ele surgiram muitas histórias para contar. Lolita Integra o NIC – mulheres palhaças e a Las Brujas cia de teatro e artes integradas. É doutoranda em educação pelo PPGEDU – UFRGS desde 2020, mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC UFRGS (2015), graduada em Licenciatura em Teatro pela UFRGS (2008), Pós-graduanda do curso se especialização em Gestão Cultural SENAC EAD (2011), professora de yoga (2007) e tem experiência como atriz, palhaça, professora e pesquisadora.

(https://www.youtube.com/channel/UC2RbJCA73mFEdJaePCbCElg)


Esse texto integra a 5a Edição da Revista Palhaçaria Feminina, lançada em 2022, editada por Michelle Silveira da Silva.

Comentários

  1. Gente , que coisa linda ... eu já tinha lido e li por aqui e também por lá e todos os lados... novamente,História lindaaaa !!!

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